Com Ítaca na mente - Prof. Dr. Beto Cavallari.

“Com Ítaca na mente” é uma leitura desafiadora e transformadora. Está pronto para essa jornada?


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Com a vida democrática, a formação de professores e a aprendizagem no centro das discussões, Com Ítaca na mente desafia os leitores a confrontar suas ideias pré-concebidas sobre educação e ensino.

O direito de acreditar em algo é inalienável, mesmo que, por vezes, isso signifique questionar aquilo que sempre se acreditou. Esse é um processo difícil, um verdadeiro desafio para qualquer um que deseje ir além das respostas fáceis e das soluções prontas. A complexidade social humana cresceu a tal ponto que as antigas relações entre desejo — o desejo de viver bem e ser feliz — e o dever — de aprender, adaptar-se e desenvolver inteligência — começaram a desmoronar.

Democracia

O desejo e o dever assumiram suas aparências maniqueístas, tornando-se prioridades concorrentes e mutuamente exclusivas. Entretanto, se quisermos trabalhar seriamente os problemas da educação sob o manto de seu Humanismo, cada vez mais desgastado, precisamos entender como reintegrar esses fatores complementares de nossa experiência compartilhada.

Decerto, isso só pode começar a partir de uma posição consciente incorporada que, desejando respeito, é encorajada a estender o respeito pelos outros. Assim, desenvolvemos gradualmente o senso de reconhecimento, no qual a necessidade humana universal de autogoverno, autonomia ou maturidade é ou pode eventualmente ser entendida. Somente com base no respeito mútuo, estendido livremente e reciprocamente, é possível aprender a se comunicar de forma criativa e ética.

Logo, tal posição vai de encontro à familiar tensão literária e cultural da busca da verdade. Esta permeia os círculos profissionais e acadêmicos. Ela tende a proporcionar aos aspirantes a docência uma experiência de frustração crítica que os induza a abandonar suas crenças em balas de prata educacionais ou em várias outras formas “pré-críticas” de crença.

Porém, ainda assim, persistem os sentimentos utópicos sobre o papel do Estado na educação de crianças e jovens, e, com isso, todas as modinhas, entusiasmos, panaceias, curas milagrosas e movimentos de reforma pedagógica de melhorias em sala de aula baseadas em ideologias e intuições.

Formação de professores

Sobretudo, essa posição revela uma maneira de transformar a formação de professores. Em vez de levar os professores aspirantes a impor suas crenças (embora nobres, examinadas criticamente etc.) aos estudantes, eles seriam treinados na observação e no gerenciamento de experiências formativas autônomas entre crianças, jovens e adultos.

De fato, a tradição humanista propôs precisamente isso, de Rousseau, Dewey e Arendt a Lyotard e Agamben. Mas talvez o problema esteja menos na teoria e mais na tradução de seus ideais em práticas pedagógicas.

Com efeito, se o professor não é mais necessário para a transmissão do currículo, que é cada vez mais automatizado, então, qual é a principal tarefa à frente? À medida que debatemos essa questão nas salas de aula e nos vários meios de nossas explosivas tradições políticas e intelectuais, começamos a ver diferenças importantes dentro da galáxia educacional humanista.

São essas diferenças que constituem os variados sentidos do ensino com o foco na aprendizagem.

Aprendizagem

Se, para Dewey, as pessoas devem ser autônomas para investigar todo tipo de “crenças” estranhas, os professores devem ser treinados para entretê-las, com o propósito de fazê-las investigar!

Porém, isso é continuamente desejável? Por isso a crítica contra Dewey baseia-se precisamente na defesa do americano do cultivo da crença de que há sempre algo para investigar. E que nossa linguagem nos dá tanto os relatos desse processo quanto os meios de descobrir novas maneiras de conduzi-lo.

O peso da informação é superestimado, por deferência a esses representantes (pessoas supostamente em busca de conhecimento; o “sujeito suposto saber”, para usar o adorável tropo de Lacan).

Em geral, sabemos muito menos do que imaginamos, mas nos apegamos aos ganhos mais insignificantes do conhecimento, se eles nos ajudarem a defender métodos de ensino e práticas pedagógicas que funcionem bem e, portanto, tenham durabilidade com escala.

Com Ítaca na mente

É nesse contexto conflituoso que recomendo o livroCom Ítaca na mente: em busca dos sentidos do ensino“, do pesquisador e professor Beto Cavallari. Neste livro, Beto oferece um relato sobre o lugar e o papel de Dewey na busca por uma compreensão profunda da formação humana, aplicada na luta pela criação de ambientes holísticos, nos quais os participantes podem compartilhar a perene experiência formativa de aprender a aprender.

Ler “Com Ítaca na mente”, do Beto, fruto de uma pesquisa implacável e difícil, realizada na Teachers College da Columbia University, é tomar uma pílula difícil de ser engolida pelas pessoas: a ideia de que não existe fórmula que possa garantir a aplicação bem-sucedida das estratégias de comunicação pluralista.

Beto impõe essa prescrição a si mesmo, não ao outro; um projeto educativo de emancipação como orientação ao sublime. Investigue, sim! Contudo, desconstruir e descompor também fazem parte do treinamento de um professor-pesquisador competente.

Assim, o livro do Beto nos faz confrontar com um momento da atividade pedagógica em que a força aterrorizante da pluralidade, a negação da segurança, o conhecimento de princípios e o silêncio funcionam como um contraponto aos feitos de expressividade e comunicação com os quais os observadores menos sensíveis são facilmente cativados.

Logo, deve-se respeitar a atmosfera pedagógica em que nada pode acontecer, particularmente na sala de aula, onde o isolamento persegue alunos e professores. Isso nos leva ao ápice do livro: não podemos encarar a tarefa da renovação da educação brasileira simplesmente mudando o sistema de educação.

Estrutura do livro

Nos dois primeiros capítulos, Beto recupera a abordagem americana da Bildung, a partir da perspectiva do influente filósofo pragmatista John Dewey.

No capítulo 3, vemos como a experiência se baseia na ação, no trabalho da filósofa Hannah Arendt, que nos guia em nosso julgamento sobre a questão da escala, quando aplicada no contexto da aprendizagem experiencial.

No quarto capítulo, descobrimos a potencialidade oculta da experiência negativa: Jean-François Lyotard se junta a Dewey e Arendt, para nos ajudar a pensar em nossas próprias experiências de ausência, desconforto, perda, pesar, culpa, vergonha e toda a rede de fatores interconectados e dinâmicos.

Em seu capítulo final, o livro traz todas essas lições para pressionar um inimigo poderoso da experiência educacional nas escolas brasileiras: a fraude e a corrupção.

Palavras finais

Se “Com Ítaca na Mente” nos fornece um diagnóstico preciso das escolhas importantes que os reformadores da educação enfrentam no Brasil, é somente porque está fundamentado em uma consideração penetrante de uma história de conflito e reconciliação entre:

  • as ideias e teorias filosóficas, de um lado, e
  • as práticas dos indivíduos e instituições que tentam aplicá-los, do outro lado, particularmente na formação de professores.

De fato, este livro será considerado inestimável por qualquer um que tente compreender as complexas apostas políticas envolvidas na educação brasileira e, especialmente, por aqueles que desejam influenciar as práticas de escolarização.

Todavia, a conversa mais ampla em que Beto nos envolve diz respeito a todos nós, fundamentalmente, como protetores da memória e cultivadores da inteligência e da imaginação.