Após analisar o pandemônio criado pelas fakenews, o editor Beto Cavallari aprofunda-se no tema para refletir sobre a origem da engenharia do caos nas redes sociais, a sua finalidade e o caos carnavalesco no Facebook.
Vivemos tempos de guerra cultural, na batalha atual dos conservadores exaltando “nacionalismo” e “capitalismo”, e criticando o “marxismo cultural” e o “comunismo”. Até parece que estamos vivendo em 1989. Isto é, às voltas com as ameaças de um fenômeno dito hegemônico pautado na própria noção de hegemonia do filósofo marxista italiano, Antônio Gramsci. Portanto, precisa ser confrontado…
Perceber a “bolha” cultural atual dos progressistas como uma ameaça comunista e uma hegemonia cultural é apenas um exemplo das confusões conceituais sob as quais atuam os “engenheiros do caos”. Por sinal, essa expressão é utilizada pelo escritor e jornalista ítalo-suiço Giuliano Da Empoli, em seu livro com o mesmo nome (2020).
O que os “engenheiros do caos” e o Carnaval tem a ver com a ação recente de grandes marcas publicitárias contra a rede social Facebook? Vamos entender isso mais de perto.
A origem da engenharia do caos
A prática de “engenharia do caos” nasceu como uma possibilidade de comparar o que pode vir a acontecer com o que realmente acontece em grandes sistemas de informação digital. A empresa por trás disso? A Netflix! Em 2010, a empresa decide abandonar a entrega de filmes em DVD pelos correios para entrar de corpo e alma na distribuição digital de conteúdo.
Nasce, então, o projeto “Macaco do caos” (Chaos Monkey). Seu objetivo era forçar, internamente, as vulnerabilidades do sistema para antecipar ataques externos aos seus preciosos conteúdos. Se esses conteúdos eram, então, gravados no DVD, agora são hospedados na Amazon Web Services. Consequentemente, ao quebrar intencionalmente o próprio sistema, os programadores digitais da Netflix imaginavam que aprenderiam como construir sistemas mais resilientes. Após alguns anos bem-sucedidos de ataques ao sistema, o termo “engenheiros do caos” foi finalmente cunhado em 2014. O responsável foi o engenheiro da Netflix Bruce Wong, para se referir ao trabalho desses profissionais.
Da Empoli, por sua vez, utiliza a expressão para caracterizar os programadores digitais que, através do uso de personalidades e (criação de) partidos políticos ao redor do mundo, possibilitam a comparação de “balões de ensaio” na sociedade. Este é um termo do marketing político. Ele é usado para comparar o que pode vir a acontecer com o que realmente acontece em grandes sistemas republicanos democráticos.
Tais possibilidades forçam as vulnerabilidades da democracia liberal com fake news, algoritmos e teorias da conspiração. Ao mesmo tempo, elas evocam a vontade de uma minoria por golpes militares, estabelecimento da censura a jornalistas, recomendação de remédios sem comprovação científica dos seus resultados, picuinhas diplomáticas entre outros “balões”. Desse modo, ao quebrar as instituições republicanas no imaginário popular, disseminando ódio e medo através de fake news, algoritmos e teorias da conspiração, os “engenheiros do caos” aprenderam como memetizar a vontade das minorias para influenciar multidões e ganhar eleições.
Consequentemente, eles não quebram necessariamente o establishment, mas o tomam para si para usá-lo ao seu sabor.
A finalidade dos engenheiros do caos
No livro Engenheiros do caos (2020), Da Empoli lança mão do conceito de carnaval romano a partir das memórias de J. W. Goethe pela cidade eterna no século XIX (Viagem à Itália, 2017). Seu intuito é estabelecer um paralelo, uma conexão com o fenômeno do populismo nacionalista contemporâneo em tempos de fake news em escala inimaginável e amplificadas pelas redes sociais.
Duas chaves-de-leitura emergem nessa conexão:
- O caráter fundamentalmente espontâneo do carnaval, como proposto pelo russo Mikhail Bakhtin na obra Cultura popular na idade média: o contexto de François Rabelais (2010), e os populistas da era digital
- E aquilo que o autor chama de “leitura carnavalesca do populismo”, forçando uma analogia entre certas outras características da manifestação cultural do Carnaval na Roma da Idade Média e de Goethe, e os populistas da era digital
Ainda que a leitura de Bakhtin seja adorável, o foco na conexão proposta recaí com mais peso nessa segunda chave-de-leitura. Esta se aprofunda em outras essências carnavalescas romana histórica desde a Idade Média em seu paralelo ao populismo nacionalista do século XXI.
Assim, quais seriam essas características essenciais do carnaval romano que se conectam mais explicitamente com os movimentos populistas atuais, se não a espontaneidade? Basicamente, existe um conjunto de características que formam uma força de atração que é compartilhada por ambos os movimentos:
- insatisfação
- raiva
- espírito subversivo
- vontade de tomar diretamente o controle sobre as decisões públicas
Mas também,
- satisfação de pertencer a uma comunidade
- dar (outro) sentido a vida
Esses elementos estariam presentes tanto na essência populista do carnaval quanto na essência carnavalesca do populismo contemporâneo, porém, não simplesmente espontâneos (Bakhtin), mas manipulados. Por conseguinte, é possível amarrar a relação entre o espírito carnavalesco do populismo contemporâneo e os engenheiros do caos:
- A vontade de tomar o controle sobre as decisões públicas é uma maneira de extravasar a insatisfação e a raiva com a democracia liberal e com a política representativa
- Isso é possível caso se instale uma “democracia direta eletrônica”, na qual o governo funciona através de enquetes online, trazendo o eleitor exatamente para o espaço público das redes sociais
- É nesse espaço digital em que os cidadãos subversivos podem ser facilmente manipulados por fake news, trolls, bots, algoritmos, teorias da conspiração e propagandas automatizadas
Se isso parece uma distopia de populistas como Trump, nos EUA, e Salvini, na Itália, isto é, como sendo um fenômeno muito distante de nós, vejamos alguns exemplos nacionais. O presidente da República desiste de nomear Renato Feder para o cargo de Ministro da Educação. Isso ocorreu após ouvir o filho Carlos Bolsonaro sussurrar que ideólogos apoiadores do Governo eram contrários a indicação dele nas redes sociais. A Prefeitura Municipal de Marília, no interior de São Paulo, minha terra natal, realizou na semana passada uma enquete no Facebook. O objetivo era decidir se o comércio deveria ficar aberto ou fechado diante da pandemia do covid-19.
Nada de apuração, depuração e avaliação por profissionais e especialistas em educação ou saúde, menosprezando qualquer apelo técnico da tomada de decisão. A decisória inoperante que afeta políticas públicas de educação e saúde no Brasil, e em Marília, diante da pandemia do covid-19, é pautada no caos e no voto na enquete de rede social. Com efeito, duas observações. Primeiro, o peso da responsabilidade decisória do gestor público se reduz a fluidez do sentimento comum das pessoas. Em segundo lugar, o Estado passa a ser administrado como um telemarketing. Isso provoca uma sensação de controle ideólogo sobre a esfera pública enquanto os mesmos tens manipulado suas insatisfações e raivas, mas também a vontade de pertencimento para se juntar a outros e confrontar quem pensa diferente nas pautas econômicas, ambientais, de valores e comportamento etc.
A democracia direta eletrônica do carnaval dos populistas digitais está testando as vulnerabilidades da democracia liberal nos quatro cantos do Brasil.
O caos carnavalesco no Facebook
O carnaval na Roma de Goethe tomava as ruas da cidade eterna. Era uma ocasião quando homens se sentiam livres para se vestir de mulher, mulheres de homem e todos os desempoderados podiam xingar livremente os poderosos, o rei incluído. Podiam até mesmo levar suas insatisfações, raivas e vontade de tomar o poder ao seu limite. Isso ocorria através de encenações de enforcamento dos poderosos da cidade. Inclusive, há casos históricos do caos carnavalesco saindo do controle, com dezenas de pessoas da elite romana sendo realmente enforcadas.
Qual o nosso paralelo, a nossa conexão com o populismo carnavalesco atual digital? O Facebook é uma grande rua na Roma da Idade Média na época de carnaval, só que manipulada pelos “engenheiros do caos”. É a plataforma de rede social mais expressamente associada a postagens com violações de direitos civis, discursos de ódio, teorias da conspiração e fake news. A posição de Mark Zuckerberg para inibir tudo isso tem sido indiferente ou insuficiente.
Por um lado, a indiferença vem à tona quando ele afirma que a sua rede social não é proprietária dos conteúdos publicados em sua plataforma. Portanto, não se responsabiliza e não interfere nas nossas publicações lá. Isso é uma grande ironia, já que o Facebook vende nossas informações como commodities. Pior, a empresa calibra seus algoritmos para enviar publicações (especialmente fake news e teorias da conspiração) sob medida em nossas timelines com a missão de provocar a liberação de dopamina em nossos cérebros através de insatisfação e ódio, nos manipulando a “interagir” e “combater”. O resultado é um alto tempo médio de uso na plataforma. Isso significa audiência contínua. E audiência significa venda de publicidade.
Por outro lado, o Facebook acena, ainda insuficientemente, para a abertura do diálogo com ativistas sociais, CMOs e outros grupos de interesse, no sentido de inovar alguns procedimentos internos de controle. Após a morte de George Floyd, esse caldeirão entrou em ebulição e o calor atingiu Zuckerberg. Neste exato momento, o Facebook está enfrentando um dos seus maiores desafios com o avanço de um #boycott publicitário de grandes marcas na plataforma. Tal desafio parte de uma ação de #StopHateForProfit pedindo inovação na rede social para mediar a publicação de discursos de ódio e fake news que geram lucro. A marca de vestuário North Face foi a primeira a aderir corajosamente ao movimento.
Hoje, a gigante das redes sociais sofre com as grandes marcas publicitárias americanas se unindo a North Face. No caso, marcas como Coca-Cola, Unilever, Starbucks, CVS, Verizon e pelo menos mais outras 900 marcas já aderiram. Elas estão fazendo suas lições de marketing e ouvindo os seus consumidores. E são eles que estão dizendo, Basta! aos discursos de ódio e as fake news. A consequência imediata está sendo a retirada dos investimentos publicitários dessas marcas no Facebook e Instagram dentro dos seus planejamentos estratégicos de 2020, tendo impacto no preço das ações na Bolsa de Valor.
Entretanto, haveria algo mais? Analisando, à luz dos resultados comerciais gerais, que essas grandes marcas publicitárias vem reavaliando os seus exorbitantes orçamentos em marketing digital ao longo dos anos; soma-se a isso um ano de 2020 com perspectivas reduzidas de consumo diante da pandemia do covid-19; pergunto:
Há por parte dessas grandes marcas publicitárias um sentido de aprendizagem organizacional transparente e legítimo pautado no Basta! e no enfrentamento do caos carnavalesco no Facebook? Ou as empresas acabaram sendo forçadas para dentro de uma “bolha” cultural progressista, particularmente a “cultura do cancelamento” diante de excessos éticos, morais e do sistema capitalista? Ou ainda: trata-se de uma jogada comercial de custo-benefício de ocasião; soma-se a isso atender a demanda de uma boa parcela dos seus consumidores?