Entre os clássicos e os interesses dos alunos. Até quando esse dualismo?


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A história da origem da filosofia nos mostra uma tensão entre cultura oral e cultura escrita. A BNCC segue o mesmo caminho para a Língua Portuguesa?

Para a etapa Ensino Fundamental, área Linguagens, componente curricular Língua Portuguesa, a BNCC apresenta uma organização para as práticas de linguagem dividida em cinco campos:

  1. campo da vida cotidiana,
  2. campo artístico-literário,
  3. campo das práticas de estudo e pesquisa,
  4. campo jornalístico-midiático e
  5. campo de atuação na vida pública

Por sua vez, as práticas de linguagens se constituem em:

  1. leitura de textos,
  2. produção de textos,
  3. oralidade e
  4. análise linguística/semiótica.

O campo 1, da vida cotidiana, está restrito a fase dos Anos Iniciais. Enquanto isso, o campo 4, está restrito a fase Anos Finais. O texto da BNCC traz a seguinte justificativa:

“Os campos de atuação considerados em cada segmento já contemplam um movimento de progressão que parte das práticas mais cotidianas em que a circulação de gêneros orais e menos institucionalizados é maior (Campo da vida cotidiana), em direção a práticas e gêneros mais institucionalizados, com predomínio da escrita e do oral público (demais campos). A seleção de gêneros, portadores e exemplares textuais propostos também organizam a progressão, como será detalhado mais adiante”.

Esse movimento de progressão do gênero oral para a escrita é o movimento fundante da filosofia e, posso dizer, da cultura Ocidental, da sociedade democrática e da individualidade.

A institucionalização do pensamento racional

O filósofo e linguista alemão do século XX Gunter Gebauer e o filósofo da educação e antropólogo Christoph Wulf escreveram um belíssimo livro sobre um momento crucial na cultura antiga. Em jogo estava precisamente a mudança de uma cultura baseada no discurso oral para uma baseada no discurso escrito. Vou resumir muito resumidamente os pontos principais.

Gebauer e Wulf apontam que a crítica de Platão à mimesis, por um lado, e a busca logocêntrica pela verdade, por outro, só são profundamente entendidas no contexto da mudança da cultura da oralidade para a escrita (alfabetização). Portanto, para eles, as discussões ontológicas, epistemológicas e estéticas devem ser tomadas juntamente com as mudanças sociais e institucionais que permitiram Platão fazer o que ele fez a respeito da própria mimese e da verdade.

Em outras palavras, o movimento de crítica de Platão à mimesis e de busca da verdade está intimamente relacionada ao seu esforço em substituir um discurso baseado em imagem, com seu vínculo com a oralidade, por um discurso conceitual, com seu vínculo com a escrita. Aliás, essa tensão entre esses dois discursos, na qual se manifesta uma transformação da linguagem e do pensamento, é uma característica marcante de Platão.

Entretanto, qual é a tensão entre esses dois discursos? Podemos responder mencionando a história da origem da filosofia, em três momentos.

  1. O primeiro aspecto é que a filosofia é uma prática de conversação originada entre os gregos antigos e liderada por Sócrates, cujo objetivo é atravessar a doxa ou a opinião falsa sobre as questões do estado e do ser.
  2. No segundo aspecto, a filosofia consolida-se como um conhecimento cultural estabelecido por meio da peculiaridade de seu novo meio: a escrita através da tinta de Platão, que transcreve os diálogos socráticos em primeira e segunda mão.
  3. O terceiro momento é marcado pela crítica de Platão e Sócrates da própria atividade de escrever em geral em favor do diálogo espontâneo.

Cultura oral e cultura escrita

Os dois primeiros momentos trata especificamente da discussão sobre poesia e artes. Por meio do duradouro processo de introdução do alfabeto na cultura grega antiga, a escrita de poemas aconteceu de forma muito intimidada diante do uso mais popular e dominante da linguagem oral.

Certamente, a escrita como linguagem começa a acontecer com os poetas, mas sob o arcabouço da oralidade e de seus fins:

  • eles escrevem para uma platéia de espectadores em vez de leitores,
  • sua escrita é baseada no modo métrico falado e cantado em vez de textual e
  • eles escrevem dentro do referencial imaginário.

Tudo isso resume-se à maneira pela qual se acreditava que o conhecimento e a sabedoria estavam estabelecidos na cultura oral da época. No entanto, eles também constituem parte da desconfiança de Platão na cultura oral como algo que poderia sustentar a polis unida.

Entre as insuficiências da cultura oral, principalmente a preocupação de Platão era o deslocamento de modelos de comportamento e imitação de sentimentos. De forma mais específica, são padrões rítmicos através de narrativas cujo objetivo é modelar ações e pensamentos por meio da repetição, expressão formal, antítese, aliteração e assonância e títulos; também poderia ser apontado como parte de tal repertório tocado e falado os sons, a melodia, a estrutura, a dança e a participação conjunta do público com o orador.

Como resultado, Platão é considerado o primeiro pensador a estabelecer sistematicamente a escrita como meio de pensar. Ele foi o primeiro pensador a trabalhar escrevendo como meio de conceituação, de tratar idéias com precisão e rigor, em termos de sua fixação e estabelecimento.

Os clássicos e os interesses dos alunos

No artigo “Como trabalhar clássicos da literatura no Fundamental“, Anna Rachel Ferreira indica a existência de um certo abismo entre a leitura dos clássicos e as preferências de leitura dos alunos do Ensino Fundamental. Tratar das preferências de leitura de crianças e jovens é terreno arenoso, como apontei em um outro post. Porém, isso exige ainda mais a atenção de professores e educadores.

Certamente, a lista familiar dos cânones da literatura brasileira e internacional trabalhados em sala de aula está disputando as preferências dos alunos com as redes sociais, os HQ, as novelas gráficas e os gibis, no contexto do mundo fugaz da sociedade líquida, termo utilizado pelo filósofo Zygmunt Bauman. As atitudes e hábitos dos alunos em relação a atividade de ler mudou e tem mudado drasticamente. Esse fenômeno está sendo chamado, nos EUA, de epidemia, que ataca os hábitos de leitura das crianças e jovens, minando-o e empobrecendo-o.

Aqui no Brasil, a fim de dar uma resposta a esse epidemia, a própria BNCC acaba usando o veneno para produzir o antídoto contra a epidemia. Em outras palavras, habilidades como EF05LP18, na unidade temática Oralidade, e EF05LP20, na unidade temática Análise Linguística e Semiótica, ambas para o 5º ano, reconhecem o baixo interesse dos alunos pelas leituras, particularmente os clássicos, e apoiam-se nos HQ, desenhos animados, filmes, gibis etc.

A princípio, é como se todos concordassem com a existência de uma epidemia e a solução contra isso não está necessariamente na leitura de um livro de Machado de Assis.

O que está em jogo?

A questão dos clássicos no contexto da mudança dos hábitos de leitura das crianças e jovens na atualidade não é o principal problema. O que está em jogo, na verdade, é uma tensão entre determinar aquilo que os alunos irão ler em sala de aula e deixá-los escolher o que querem ler. Independente se trata-se de um clássico como Machado de Assis ou um gibi, o problema é encarar que o campo da vida cotidiana é apenas um pontapé inicial no processo de alfabetização.

Na prática, em termos técnicos, é preciso tornar o campo da vida cotidiana não apenas a base introdutória da Língua Portuguesa, no processo de alfabetização. Ele se torna a base fundamental presente em todas as duas fases da etapa do Ensino Fundamental. Filosoficamente falando, estamos diante de uma reviravolta na estrutura arqueológica clássica que formou o pensamento racional.

Antes de mais nada, o domínio das plataformas digitais na preferência das crianças e jovens deve servir de lição aos educadores e professores: é o império dos interesses e do gosto, ao invés de uma antiga tensão entre cultura oral e cultura escrita. E qualquer atividade de leitura que pretende-se como arte ou trabalho árduo e rigoroso conceitual deve estar atrelada a isso.